Carta de Buenos Aires (2006)

Em 24 de março de 1976, iniciava-se na Argentina a mais brutal ditadura militar de toda sua história. Seu saldo foi um processo de reestruturação social, política, econômica, educacional e cultural, baseado na repressão, no genocídio, na expropriação dos recursos econômicos e naturais do país; uma nação despojada de seus direitos cidadãos; uma geração massacrada; uma infame guerra pelas ilhas Malvinas; e a pretensão de construir um futuro definitivamente tutelado pelos donos do poder e da riqueza.

Foram décadas de luta e mobilização popular, de heroísmo e compromisso, de algumas derrotas e de grandes vitórias democráticas. Hoje, 30 anos depois, mais de treze mil educadoras e educadores, representantes de movimentos sociais, organizações populares e sindicais de diversos países latino-americanos e europeus nos reunimos em Buenos Aires para render nossa homenagem a todos aqueles que entregaram suas vidas na luta por uma sociedade mais justa e igualitária.

O Fórum Mundial de Educação de Buenos Aires, sob o lema Educação Pública, Inclusão e Direitos Humanos, constitui o marco plural, democrático e participativo desse encontro. Após três dias de intenso debate e deliberação, os delegados e delegadas deste Fórum afirmamos nosso mais enfático repúdio às políticas neoliberais que cristalizam a injustiça social, a segregação e a exclusão das grandes maiorias.

Consideramos que a América Latina vive um momento político de enorme riqueza, em que a capacidade de mobilização, luta e reivindicação das organizações sociais e populares constitui a base sobre a qual se consolidam os avanços democráticos alcançados.

Reafirmamos o princípio de unidade dos povos latino-americanos e sua capacidade de resolução de todo e qualquer conflito entre nossas nações, por meio de estratégias que consolidem laços regionais de solidariedade e fraternidade.

Expressamos nosso compromisso ético e político com um projeto de sociedade em que todos, sem discriminação de nenhuma espécie, tenhamos direito efetivo a uma educação pública de qualidade, à saúde, ao trabalho e ao desenvolvimento pleno de uma vida digna. Estamos convencidos de que a educação é um direito humano e social inalienável, uma ferramenta poderosa na construção histórica de uma sociedade justa e igualitária.

Consideramos que a educação pública supõe a deliberação democrática das políticas e estratégias destinadas a orientar suas ações. Sustentamos que uma democracia efetiva somente será possível quando se assegure a todos e todas o acesso e a permanência em instituições públicas de educação, em que o trabalho cotidiano permita uma apropriação ativa do conhecimento socialmente significativo e dos valores que sustentam a justiça social, a igualdade e a solidariedade entre os povos.

Consideramos que o proceso de desinvestimento, abandono, degradação e precarização das condições de trabalho na escola questiona o caráter público de nossas instituições educativas, transformando o direito à educação em uma falsa promessa. Exigimos dos Estados o exercício de sua indelegável responsabilidade de garantir uma educação pública e popular para todos os cidadãos e cidadãs. É imprescindível que os governos destinem os recursos financeiros necessários a esse fim, propondo-se como meta um investimento não inferior a 6% dos PIBs nacionais. A educação de qualidade, como a riqueza, não constitui, em nossas sociedades, um bem público, mas uma oportunidade expropriada por uma minoria, que faz do privilégio seu direito. Nesse sentido, a lucha pela educação pública deve ser sempre a luta por uma escola popular; e a lucha por uma escola popular, a luta por uma escola de qualidade para todos e todas.

Afirmamos que o caráter universal do direito à educação supõe o reconhecimento da diversidade cultural, identidatária e lingüística que convive em cada uma de nossas sociedades. Amplificar, fortalecer e consolidar essa diversidade é parte do direito que temos a uma educação de e para todos.

Defendemos uma política de educação inclusiva e integradora, especialmente para os setores portadores de necessidades educativas especiais e singulares.

Consideramos imprescindível garantir um investimento público amplo e permanente destinado a esses setores, bem como condições efetivas de educação, mediante o mais irrestrito respeito a suas identidades e às necessidades que delas derivam.

Lutamos contra toda forma de privatização da educação e nos opomos enfaticamente a sua inclusão nos Tratados de Livre Comércio ou a sua transformação em um bem comercializável por meio de regulamentações internas que promovem sua mercantilização. Ante uma crescente presença de instituições educativas com fins de lucro, defendemos a necessidade de definir pautas de regulamentação da concessão de subvenções estatais, priorizando a transferência de recursos a instituições que cumprem fins comunitários, cooperativos e sociais.

Temos plena consciência de que a esfera pública é um campo de disputa, e a cidadanía e as organizações sociais estamos comprometidas na luta por sua apropriação e ampliação. Assim, a luta pelo conhecimento, que é sempre a luta pelo poder, ganha uma importância vital.

Consideramos que este Fórum, sendo parte de um processo permanente de mobilização para a construção de uma Plataforma Mundial de Luta pelo Direito à Educação, deve constituir-se em um espaço de debate e deliberação coletiva, gerando condições para sua continuidade.

Propomos a constituição de Fóruns Permanentes que atualizem e prolonguem essas lutas. Com o mesmo compromisso de Isaura Arancibia, Marina Vilte, Eduardo Requena e tantas companheiras e companheiros trabalhadores da educação, assassinados e desaparecidos ao longo de nossa história, nos comprometemos a seguir lutando por uma escola pública, popular, democrática e a serviço da construção de uma sociedade em que a justiça social, a igualdade e os direitos humanos sejam uma realidade efetiva e duradoura.

Hoje, trinta anos depois, a memória de trinta mil desaparecidos ilumina e fortalece nossa luta por outro mundo possível.

Um mundo em que a educação seja um grito de esperança e dignidade.

A eles, a elas, dedicamos este Fórum.

Buenos Aires, 6 de maio de 2006. Fórum Mundial de Educação Temático – Buenos Aires, 2006.

 

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